Foto: Evandro Teixeira |
Jornal do Brasil - CELINA
CÔRTES
Era a manhã de 26 de junho
de 1968, quando os estudantes já começavam a se espalhar pela vizinhança da
Cinelândia, no Centro do Rio. As pessoas chegavam em blocos, que reuniam
artistas, intelectuais, políticos, populares e até freiras. Antes foram
organizadas várias manifestações estudantis, sob o trauma do assassinato à
queima roupa do secundarista Edson Luís, quatro meses antes. Por alegadas
razões humanitárias, a ditadura acabou autorizando a passeata organizada para
aquele dia. A marcha começou às 14h na Avenida Presidente Vargas, com cerca de
50 mil pessoas. À frente, a faixa: “Abaixo a ditadura, o povo no poder”. Uma
hora depois o número de participantes já havia dobrado. De uma forma pacífica,
uma multidão esperançosa estava ali por acreditar em dias melhores. O que se
viu, porém, foi a decretação do Ato Institucional nº 5 – o AI-5, em 13 de
dezembro de 1968, que mergulhou o país nas trevas até1985, quando terminou a
ditadura militar.
Cinquenta anos depois, o JB
entrevistou alguns destes participantes, inclusive Vladimir Palmeira, o líder
estudantil que trouxe consistência à passeata com seus inflamados discursos. A
atriz Ana Maria Nascimento clareou as conexões entre o movimento estudantil e a
classe artística, e a antropóloga Yvonne Maggie conecta um nascente movimento
de mulheres que encontravam a liberdade nas manifestações, nas calças jeans.
Vladimir Palmeira, 73 anos,
economista com doutorado em história, um dos fundadores do PT, hoje no PSB,
professor de Economia na Facha
“Estava com 23 anos e
presidia a União Metropolitana dos Estudantes (UME). Defendíamos mais verbas
para as universidades e não admitíamos a privatização do ensino, como queriam
os militares. E lutávamos contra a ditadura. A UME era uma entidade tipo
sindicato, tínhamos um trabalho estruturado, éramos eleitos e discutíamos
nossas propostas com os delegados que nos representavam. Como resultado,
conseguimos manter o ensino gratuito nas universidades. Queriam matar a gente,
mas naquela situação, em meio a cem mil pessoas, não senti medo e graças a Deus
não me mataram, senão não estaria falando com o JB nesse momento. Para mim era
normal falar, cada um que chegava ali falava o que quisesse, estava na margem
de risco. Não senti medo e nem pensei nisso.
Ana Maria Magalhães, atriz,
68
“Tinha 18 anos na época. O
teatro lutava contra a censura que criou um clima de insegurança e chegou a
mexer na economia, mobilizando também os empresários. Até o clássico “Um bonde
chamado desejo”, de Tennessee Williams, foi censurado. A diretora era Maria
Fernanda, filha de Cecília Meireles, que se revoltou. Houve também o episódio
“Oito do Glória”, quando oito intelectuais se manifestaram na frente do Hotel
Glória contra a ditadura – entre eles Antonio Callado, Carlos Heitor Cony e
Glauber Rocha -, durante uma conferência da Organização dos Estados Americanos
(OEA), com presença do presidente Castelo Branco. Foram todos presos. Tudo isso
gerou uma mobilização muito forte na classe artística. Em fevereiro de 1968
houve uma greve de três dias na escadaria do Teatro Municipal e, no mês
seguinte, a morte de Edson Luís. Eu estava na remontagem de “Duralex, Sedilex”,
com Vianinha, no Teatro Opinião, houve uma grande comoção e fomos todos
participar do evento de corpo presente na Assembleia. A classe estava muito
engajada e a partir dessa morte houve uma indignação coletiva, com adesão da
classe média, cujos filhos estavam sendo massacrados pela ditadura. Por isso
aquela multidão, não achávamos que iria juntar tanta gente. Foi super
emocionante, uma passeata densa, engajada.”
Cid Benjamin, jornalista e
secretário municipal de Educação, 69 anos
“Na época eu era dirigente
da UME e participei dos processos de mobilização. Havia um ciclo de
manifestações diárias, organizadas para horários mais perto do almoço, porque
se fossem de tarde teriam menor duração. Os jornais publicaram na manhã do dia
21 o que passaram os estudantes detidos no Campo do Botafogo. Fui jantar e vi
as imagens ao vivo na TV da pancadaria da Sexta-Feira Sangrenta, verdadeira
insurreição urbana. Passamos a trabalhar para promover uma grande manifestação,
que envolvesse outros segmentos da sociedade, de sala em sala na universidade.
A ditadura aprovou a passeata ‘por razões humanitárias’. Não teve repressão ou
confusões, havia um clima de alegria, de festa, no sentido de que as pessoas
estavam satisfeitas em participar daquele protesto. Em seguida acabou o ano
letivo e houve uma trégua, e no segundo semestre caiu muito a participação
estudantil.”
Yvonne Maggie, antropóloga,
professora emérita da UFRJ, 73 anos
“Estudava Ciências Sociais e
estava com 24 anos naquela época. Gilberto Velho, meu ex-marido, então meu
namorado, me disse, ‘você não vai...’, assim como meus irmãos. Mas fui. Cheguei
na esquina da Biblioteca Nacional e dei com aquele mar de gente. Pensei,
‘imagina se encontro Gilberto’, não deu outra. Ele tinha ido buscar nossas
alianças e acabamos ficando noivos na passeata. Nos anos 60, 70, as meninas
estavam construindo sua liberdade. Eu não era propriamente feminista, mas estar
ali aguçava essa sensação de liberdade, assim como usar jeans, fumar maconha e
usar pílulas anticoncepcionais, quando ainda não havia o HIV. Não estávamos ali
por que os meninos estavam, fomos porque queríamos participar daquele momento
inesquecível, de liberação do desejo. Depois daquilo só piorou, porém
continuamos nossa busca em meio aos anos de chumbo que vieram depois do AI-5,
em dezembro de 68.”
Carlos Zílio, artista
plástico, 72 anos
“Estava com 22 anos e já
tinha atividade como artista plástico em 1968. Estudava psicologia na UFRJ,
onde atuava no diretório acadêmico e era diretor do Diretório Central dos
Estudantes (DCE) da universidade. Havia uma luta por mais verbas, mais vagas e
melhoria do ensino público. E havia um descontentamento geral com a ditadura. Durante
a passeata me lembro de um grande congraçamento, um sentimento de plenitude em
todos os segmentos da população. Era como se exercitássemos radicalmente uma
possibilidade do político, de tudo o que era cerceado. Abriu-se um clarão.
Depois fiquei preso por dois anos e meio, foi um período muito difícil na minha
vida.”
Ernandes Fernandes,
arquiteto, 75 anos
“Tinha 25 anos e estava lá
assim como ‘todo mundo’. Naquela época havia cinco universidades de arquitetura
no país, hoje são mais de 100. Todos estávamos
voltados para o movimento social feito pelos estudantes e intelectuais. Não
cheguei a ter uma participação mais ativa no movimento, inclusive sentia medo
em à passeata, mas não tinha como não participar daquela onda, uma grande
manifestação pacífica.
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